terça-feira, 17 de agosto de 2010

A história repete-se. 100 anos depois, tudo na mesma.

Se lhe retirarem as datas e referências contemporâneas, podia ser uma análise do Portugal dos últimos anos. A História repete-se, e ajuda a perceber de onde viémos, e porque é que hoje somos o que somos.

Portugal 1900  - Uma granja e um banco

Olhando para a economia portuguesa dos primeiros anos do século XX, prevalece a imagem de um país estagnado, com 5,5 milhões de habitantes, pobre, rural e esmagadoramente analfabeto. A implantação da República manteria o retrato.  

Por Maria Fernanda Rollo


Uma granja e um Banco: eis o Portugal, português. Onde está a oficina? e sem esta função eminente do organismo económico não há nações. Pode haver populações provinciais; pode haver Mónacos; mas falta um órgão de circulação, um membro ao corpo humano. Um povo constituído em nação é como um abecedário: todas as letras lhe são necessárias para escrever o que pensa.

Oliveira Martins,

Portugal Contemporâneo, 1881

Portugal 1900. O ano começou escassas horas depois da inauguração da 1.ª Exposição de Amadores Fotográficos, realizada na Sala Portugal da Sociedade de Geografia de Lisboa, em que participaram, entre uma cinquentena de concorrentes, fotógrafos como Carlos Relvas e Jorge de Almeida Lima. O acontecimento dominou a actualidade nacional. A Família Real esteve presente, até porque tanto o rei D. Carlos como a rainha D. Maria Pia participaram como expositores extraconcurso.

No mesmo ano, mas em Paris, sob o signo da luz e do ambiente frívolo e cosmopolita da capital francesa, realizou-se a grande Exposição Universal. As modernas economias industriais exibiam os seus principais trunfos tecnológicos, revelando aos olhos de milhares de visitantes os grandes feitos do capitalismo mundial.

Entre máquinas a vapor, caminhos-de-ferro, telégrafos e instrumentos de todos os tipos, o homem oitocentista revelava-se, vitorioso e conquistador.

Portugal fez-se representar. O pavilhão de Portugal na grande Exposição Universal de Paris era, porém, o retrato de um país distante da realidade "técnico-científica" que animava as grandes realizações do período áureo da Belle Époque. O carácter semianalfabeto da sua população activa, aliado à ausência de pessoal técnico qualificado, reflectia-se em produções de pequena escala e baixos índices de produtividade por trabalhador. Reflexo de um país que, desde há longa data, não obstante os esforços mais recentes e a pressão positiva do clima internacional de crescimento e internacionalização, se mantinha ainda muito distante da natureza e dos resultados apresentados pelos países económica e socialmente mais desenvolvidos da Europa e do mundo.

A década que termina o século XIX conheceu uma crise generalizada em que se inscreveu o colapso da monarquia constitucional e o caminho que conduziu à implantação da República. Ao ano do
Ultimatum britânico sucedeu o da revolta republicana no Porto, a 31 de Janeiro de 1891, marcando o percurso que, a prazo, poria termo ao primeiro liberalismo português. Foi, aliás, nesse quadro que os republicanos entraram na recta final do trajecto que em 1910 os conduziu à tomada do poder.

A par da instante crise política, o generalizado mal-estar social, a crise económica e, com grande espectacularidade, a derrocada financeira compuseram o cenário de catástrofe que os escritores finisseculares então pressentiam e denunciavam impiedosamente. À passagem do século ficaria indelével e dramaticamente associada essa ideia de crise e decadência, imortalizada na ficção de Eça de Queirós, que morreu precisamente em 1900, de Teixeira de Queirós e Fialho de Almeida, ou na poesia de Guerra Junqueiro e António Nobre (também morto em 1900). Sendo certo, porém, que o fervilhar ideológico do princípio do século XX originaria a contra-reacção, lutando contra o pessimismo decadentista da geração anterior.

O contexto era propício ao descrédito, que se agravou com o inusitado e dramático
Ultimatum apresentado pelo Governo inglês de Lord Salisbury, pela onda de agitação que provocou, fortemente inflamada pela propaganda republicana e pelas sequelas que desencadeou. A par do impasse político, o modelo de desenvolvimento económico da Regeneração revelava sinais de esgotamento, desembocando numa profunda crise económica e financeira que assolou o país em 1890/1891.

O Portugal português

O tempo da Regeneração ficou associado à memória do ambiente de prosperidade que determinou o propósito de crescimento e de modernização, firmado pelo plano de melhoramentos e pela dinâmica registada em termos de desenvolvimento de infra-estruturas, que o poder político se propôs impulsionar tendo por principal inspirador António Maria de Fontes Pereira de Melo.

Numa dupla asserção, de modernidade e estabilidade económica, as reformas teriam de assentar na capacidade de estimular o progresso tecnológico e enquadrá-lo numa perspectiva de desenvolvimento económico. O cumprimento dessa estratégia dependia da formulação de estruturas de base, com a rede de comunicações de um lado e a formação técnica do outro, na defesa da criação do mercado nacional e da progressiva integração na economia internacional, que se devia traduzir numa rápida aproximação à Europa.

A política oitocentista de modernização dos transportes logrou lançar uma rede ferroviária, embora tivessem sido pesados os encargos para as finanças e magros os resultados para a economia nacional. Afinal, construíram-se as linhas, mas não se accionaram outros elementos modernizadores, pelo que o destino desejado não se cumpriu totalmente.

Ainda de referir a aposta da Regeneração na área das comunicações à distância. Na alvorada do século XX, havia telégrafo em todos os concelhos do continente e em muitos povoados. No panorama dos países europeus, Portugal ocupava uma posição muito honrosa, detendo um quarto ou quinto lugar, quer em relação à área do território coberta pela rede telegráfica, quer em relação ao número de habitantes servidos por estações. Havia, no entanto, ainda um longo caminho a percorrer. O telefone, essa concessão à civilização que Eça de Queirós evoca em
A Cidade e as Serras a propósito da sua instalação em Tormes, não teve porém um desenvolvimento tão rápido; por muito tempo foi sendo mantido o predomínio do telégrafo. Todavia, as primeiras comunicações experimentais de telefonia realizaram-se em Portugal logo em 1877, um ano depois de Bell ter registado a patente do aparelho.

No início da década de 1880 começaram os preparativos para a instalação das primeiras redes telefónicas públicas, em Lisboa e no Porto, e, em breve, Portugal seria o sexto país do mundo a ter sistema telefónico. A rede telefónica de Lisboa foi inaugurada em Abril de 1882 e, embora planeada desde 1887, só em 1904 foi estabelecida a ligação telefónica entre Lisboa e Porto. Contudo, o telefone e o telégrafo primavam pela quase total ausência na enorme ruralidade que caracterizava o Portugal da viragem do século, estando as redes existentes confinadas a alguns meios urbanos e rurais mais desenvolvidos. No interior do país, ainda era o correio e o telégrafo quem dava as notícias.

A política fontista de transportes, comunicações e de grandes infra-estruturas públicas não só se mostrou insuficiente para proceder à imprescindível unificação do mercado interno e para lançar o desenvolvimento, como foi feita à custa do endividamento interno e externo, de défices orçamentais e da balança comercial, que acabaria por gerar uma situação financeira difícil e pôr o país na perspectiva de uma falência generalizada.

A verdade é que Portugal se encontrava longe de encetar um processo de industrialização e modernização económica e social semelhante ao que caracterizava os países europeus mais desenvolvidos, apresentando na viragem do século taxas de crescimento muito modestas, ao nível das mais baixas registadas na Europa.

País de agricultores

O tecido produtivo nacional contava essencialmente com a actividade agrícola, mesmo se ameaçada por uma crescente concorrência internacional. Apesar disso, na tese de vários autores, o sector industrial registou um ritmo de crescimento mais rápido do que o agrícola, particularmente no período posterior a 1870.

Sendo certo que o tempo da Regeneração proporcionou um estímulo ao campo industrial, foi sobretudo ao nível das obras públicas que se registaram os desenvolvimentos mais significativos, sendo justo destacar a importância crescente da formação técnica e o papel decisivo desempenhado pelos engenheiros, no essencial formados no estrangeiro, na promoção e concretização dos empreendimentos realizados.

O tempo de "prosperidade" da Regeneração esgotar-se-ia, coincidindo com o desaparecimento do seu principal inspirador e com o fim de um relativo saneamento da situação financeira que, de resto, proporcionara o lançamento do referido projecto de modernização do país.

A difícil situação financeira em que o fontismo tinha deixado o país começava a fazer surtir as suas consequências mais violentas no final dos anos 80, tornando-se verdadeiramente incontrolável a espiral de endividamento do Estado, agravando um cenário de crise a que não foi estranha a situação internacional, em particular a crise cambial brasileira e a decorrente contracção das remessas dos emigrantes, que permitiam compensar o quadro tradicionalmente deficitário das trocas portuguesas e assim ajudar a equilibrar a situação financeira do país.

O Estado começou a sentir terríveis embaraços para acudir ao défice orçamental, para honrar os encargos da dívida e para socorrer alguns bancos e companhias (ferroviárias e coloniais) que andavam à beira da falência. Em Maio de 1891 foi decretada a suspensão da convertibilidade, a que em breve, em Junho, se seguiu o abandono do padrão-ouro. Falou-se de bancarrota e o público reagiu em pânico: entre Maio e Setembro de 1891 acorreu aos depósitos bancários e à conversão de notas. O Banco de Portugal ficou sem reservas e outros bancos acabaram por suspender pagamentos.

Acabou por ser a Oliveira Martins, que em múltiplas ocasiões se manifestara profundamente crítico relativamente à política fontista, sobretudo pela sua repercussão no desequilíbrio das contas do Estado, que Dias Ferreira entregou a pasta da Fazenda e o encargo de ultrapassar os problemas mais instantes da crise. O novo ministro das Finanças lançou imediatamente as primeiras medidas de saneamento financeiro: uma taxa entre 5 e 20 por cento sobre os ordenados, soldos e pensões; uma taxa de 30 por cento sobre os rendimentos da dívida pública interna; uma proposta de renegociação da dívida externa; e a instauração de novas pautas alfandegárias.

Nos anos de 1890 e 1891, a crise financeira e monetária foi acompanhada por quebras significativas de actividade em quase todos os sectores económicos. A crise, porém, não terá, segundo vários autores, originado um período de abrandamento do crescimento económico, dados os efeitos positivos das medidas de acréscimo do proteccionismo e de desvalorização monetária que, entre outras medidas, integraram a acção de Oliveira Martins e do seu sucessor, Dias Ferreira.

Observando o comportamento global da economia portuguesa dos primeiros anos do século XX, prevalece a imagem da estagnação, desse país de 5,5 milhões de habitantes, pobre, rural e esmagadoramente analfabeto (78 por cento em 1900), com um crescimento demográfico relativamente moderado e níveis crescentes de emigração. O crescimento do PIB para o período que antecedeu a viragem do século não terá chegado a 1,6 por cento ao ano, não tendo chegado a atingir 1 por cento para a taxa anual de crescimento do PIB
per capita no período que antecedeu a I República.

O sector agrícola absorvia 3/4 da população activa nacional, contribuindo com pouco mais de 1/2 para o rendimento nacional. O predomínio de pequenos camponeses e rendeiros era esmagador, superior a 90 por cento. A estrutura agrária portuguesa, apoiada, sobretudo no que dizia respeito à grande e média propriedade, na produção de três produtos principais - trigo, vinho e cortiça -, reflectia o modelo económico proteccionista imposto pela crise de 1899.

Na cauda da Europa

Os caminhos que se indicavam para o país não colocavam a industrialização na ordem do dia. Eram escassos os interesses da elite económica em apostar nesse sector - a agricultura e o comércio continuavam a representar as suas preferências, enquanto os seus capitais eram, em montantes cada vez mais elevados, colocados especulativamente no exterior. A indústria ocupava uma posição de segundo plano em relação à agricultura, e assim se manteve por largos anos. O que existia eram diferentes formas de artesanato de indústrias tradicionais, sobretudo a têxtil e a alimentar (conservas de peixe e moagem) e alguma química (resinosos e adubos), onde a indústria pesada primava pela ausência.

Destaca-se, porém, o sector das "indústrias de processos", onde se operaram inovações, se bem que de forma relativamente mitigada, visíveis sobretudo no âmbito das indústrias químicas, especialmente na produção de adubos. Assinalem-se os sectores do papel (Caima Pulp), do vidro (na Marinha Grande) ou dos novos materiais de construção (a primeira fábrica de cimento artificial Portland, em Alhandra, entrou em funcionamento em 1894). Ainda, pela importância que assumiu, uma referência à União Fabril, constituída em 1865, e à sua posterior fusão - organizada por Alfredo da Silva - com a Companhia Aliança Fabril (1898).

De resto, o país não estava distraído das principais novidades técnicas que ocorriam à escala internacional, acompanhando, designadamente, os desenvolvimentos no campo da electricidade e das comunicações e a utilização de novos materiais, nomeadamente na construção civil.

Nas vésperas da implantação da República, Portugal era um dos países menos industrializados da Europa, com um produto industrial ao nível de metade do agrícola e um quantitativo de mão-de-obra equivalente a um terço da população activa rural e um elevado grau de dependência externa. A implantação da República não repercutiria mudanças significativas na actividade económica, prosseguindo os objectivos de promoção do fomento económico e de controlo das contas públicas herdados da monarquia, elegendo como primeiros instrumentos: a difusão da instrução, a exploração racional dos recursos coloniais, o aumento do crédito agrícola e o saneamento das contas públicas. No essencial manter-se-ia o quadro redutor de um mercado interno sem dimensão e sem expressão, que o tecido produtivo nacional, sobretudo industrial, pouco diversificado, conservador e sem enunciado em matéria de concorrência externa, não conseguia vencer ou ultrapassar. O propósito reformista e o progresso almejados, entre vicissitudes de toda a natureza, ficariam em boa medida por cumprir, tendo visto, nalguns casos, a sua concretização adiada para o Estado Novo, continuando contudo, conforme Ferreira Dias retrataria em 1945, na "cauda da Europa".
Professora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa

Esta série tem o apoio da Comissão Nacional para as Comemorações do Centenário da República


In Público, 16 de Agosto de 2010. 


link: http://jornal.publico.pt/noticia/17-08-2010/portugal-1900-uma-granja-e-um-banco-20029619.htm

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